Depois de cinco anos de atraso e centenas de milhões em superfaturamentos apurados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o governo finalmente conseguiu concluir no início deste ano o trecho de 855 km da Ferrovia Norte-Sul, entre Palmas, no Tocantins, e Anápolis, em Goiás. Apesar de estar pronta para o uso, é grande o risco de esse traçado passar mais um ano completamente subutilizado, gerando ainda mais gastos com manutenção.
O novo drama da Norte-Sul é reflexo direto da mais recente decisão do governo de alterar radicalmente o modelo de exploração comercial que previa para as ferrovias e do tempo necessário para que essa mudança seja efetivada.
Foram gastos quatro anos em estudos e contratações de consultorias especializadas, tudo para montar um modelo aberto e concorrencial da utilização da malha. Agora, rasga-se tudo que havia sido planejado e defendido com veemência pela presidente Dilma Rousseff para se voltar ao modelo anterior, já explorado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Essa mudança, no entanto, não terá efeito imediato.
O governo depende da elaboração dos estudos pelas empresas para testar a viabilidade de sua proposta de outorga para a Ferrovia Norte-Sul entre Palmas e Anápolis, uma concessão que agora está condicionada à construção, a partir do zero, de outro trecho do traçado, uma linha de aproximadamente 500 km que ligaria Açailândia (MA) até o porto de Barcarena, no Pará.
Feitos os estudos, o governo terá de elaborar uma minuta da concessão, para então submetê-la a audiências públicas, um processo que demora meses. Passada essa etapa, a União precisa encaminhar os novos estudos para análise do TCU, uma avaliação técnica que não tem prazo específico para ser votada pelo plenário da corte. Só após receber o aval do tribunal é que o governo finalmente estaria apto a publicar o edital de concessão.
Tudo isso leva tempo. Nas contas de especialistas ouvidos pelo Estado, cerca de um ano. Nesse intervalo, os 855 km da Norte-Sul, prontos para serem usados, devem ficar absolutamente subutilizados, já que não há previsão de contratos de transporte no curto prazo.
Em fevereiro, o traçado chegou a ser usado pela empresa de logística VLI para o transporte de locomotivas da companhia. Era a primeira operação da Norte-Sul no modelo aberto de exploração comercial. Outras duas empresas de transporte de carga já haviam registrado pedidos para atuar no trecho. Essas operações, agora, estão suspensas.
A Valec, estatal federal responsável pela Norte-Sul, avalia a possibilidade de oferecer o traçado novo da ferrovia para a Vale, que já atua no trecho norte da malha, entre Palmas e Açailândia. Essa eventual utilização, no entanto, fica condicionada apenas aos interesses comerciais dessa única companhia. Outras empresas, neste momento, não podem entrar na malha.
A decisão do governo de abrir mão do modelo aberto de exploração ferroviária para voltar à tradicional concessão por meio de outorga onerosa tem como principal motivação a ambição do governo de engordar os cofres da União, além de usar os empreendimentos para tentar tirar outros da gaveta.
O traçado entre Açailândia e Barcarena, por exemplo, tinha previsão de ser o primeiro trecho que seria concedido pelo governo, no pacote de concessões anunciado dois anos atrás, mas não encontrou nenhum interessado em construir a malha.
Troca na direção
Na semana passada, o presidente interino da Valec, Bento José de Lima, pediu para deixar o cargo, alegando razões pessoais. Lima voltou a ficar apenas na diretoria de operações da estatal. Mário Rodrigues Júnior, que responde pela diretoria de engenharia da Valec, assumiu interinamente o comando da autarquia vinculada ao Ministério dos Transportes.
Superfaturamentos chegam a quase R$ 600 milhões
A empresa que assumir a operação da Ferrovia Norte-Sul, principal aposta do governo entre os projetos de concessões ferroviárias, pode se preparar para herdar mais de duas dúzias de processos em andamento no Tribunal de Contas da União (TCU).
No total, de acordo com dados do tribunal obtidos pelo Estado, esses processos superam R$ 592 milhões em casos de superfaturamento. O estrago financeiro causado pelas irregularidades, no entanto, já deve ser bem maior do que isso, porque esse valor está atrelado aos preços originais de cada contrato firmado com as empreiteiras que atuaram nas obras. A maior parte das irregularidades está ligada a contratações antigas, assinadas a partir de 2007, quando as obras da Norte-Sul foram retomadas.
Julgamento. Na semana passada, dois desses processos foram julgados pelo plenário do TCU. Neles, o ex-presidente da Valec, José Francisco das Neves, mais conhecido como Juquinha, foi multado em R$ 55 mil. Juquinha, que chegou a ser preso pela Polícia Federal em 2011, quando a chamada “faxina dos transportes” derrubou toda a cúpula do Ministério dos Transportes do governo federal, tentou explicar ao TCU que não havia cometido nenhuma irregularidade nas contratações. Os argumentos não convenceram os auditores e ministros da Corte de contas.
Entre os problemas encontrados pelos técnicos estão diversos casos de superfaturamento decorrentes de ações como “jogo de planilha” de preços, compra de quantidades inadequadas de material, avanço desproporcional das etapas de trabalho e perda dos serviços realizados, por conta de má qualidade na execução.
“Tal fato se reveste de relevante gravidade por expor a ineficiência com que se gere e se executa um empreendimento de tamanha relevância no contexto da infraestrutura de transporte no País, como a Ferrovia Norte-Sul”, declarou o relator de um dos processos no TCU, o ministro Bruno Dantas.
Fonte: Estado de S. Paulo, 22/06/2015